O sábio era ele, o intolerante e retrógrado era eu. Ele, 25 anos, eu 30. Ele professor e eu padre. Ele esquerda festiva, eu centro esquerda. Sempre fui, mesmo quando não parecia. Ele discípulo de Marx, Marcuse e Engels, eu de Jesus e do sociólogo Padre Dehon. Não significa que eu era mais do que ele. Tínhamos posições opostas sobre família, liberdade, amor e casamento. Alguns dos jovens que freqüentavam meus retiros e encontros eram alunos dele. Punham-me a par dos adjetivos que o jovem professor me dava.
Um dia, mandei recado, dizendo que me chamasse para um debate diante dos jovens que nos ouviam. Ele poderia vir à minha paróquia e eu à aula dele. Nunca aceitou. Sumimos um do outro, mas soube que, por cinco anos, ele pichava os padres e entre eles, as piores ironias iam para mim, que tinha, na época, um programa de televisão. Naquele tempo, quem pregava amor livre subia no conceito da garotada.
Tornei a vê-lo, trinta anos depois, eu com 60 e ele com 55 anos. Ele, mais desgastado do que eu. Aproximou-se e me pediu desculpas pelo passado. Ele sabia que eu sabia das barbaridades que lança contra o padre burguês de São Judas que servia ao capitalismo e à direita. Isso, segundo ele! Mal sabia ele do preço que eu pagava por querer democracia e das ameaças que sofria eu por ser padre dehoniano e, segundo o fundador da minha congregação, pregar diálogo entre sindicatos, partidos e defender um país sem ditadura, fosse ela de que lado fosse. Isso! Eu tinha a coragem de ser contra Che Guevara e Fidel Castro, mas era, também, contra Lindon Johnson, Pinochet e outras direitas. Naquele tempo havia todas as desculpas para Fidel e todas as culpas para Pinochet, embora ambos tivessem matado adversários. E eu era contra a chamada revolução sexual marcuseana. Ele estudara nos Estados Unidos e eu também. Ele passara por Cuba e eu não. Nem USA, nem Rússia, nem Cuba, nem Chile me convenciam. Eu queria um Brasil democrático e cristão. Leitor de Nietzsche, ele via o cristianismo como negação do humano e do corpo. E eu lembrava aos jovens que quem mais cuidara do corpo dos enfermos por séculos era a Igreja com seus hospitais que eram quase todos os cuidados por religiosos. Ele lutava pelo direito ao uso livre do corpo sadio e nós, pelo dever de respeitar qualquer corpo. Ele nos acusava de ver pecado no sexo e eu lembrava que a Igreja até o declarara um sacramento, sinal de Deus no mundo, desde que não fosse de qualquer jeito e com qualquer pessoa. Teria que haver vínculos! Ele desvinculava o sexo do amor.
No restaurante, sentamos e jantamos, ele, sua quarta mulher e eu, que fora só. Falou do passado e disse que se sentia perdedor. Disse-me que se eu quisesse poderia usar seu nome e até citar datas e lugares. Resumindo: nunca se casara antes. Teve três relacionamentos livres optara por quatro abortos e, finalmente, se casara com a esposa que estava à mesa conosco. Ela lhe dera uma linda filha. Mas a menina, de 13 anos, estava grávida de um namoradinho de 16. Pusera em prática o que ouvira de outros arautos do amor livre. Ele jamais diria à sua menina que, antes dos dezoito estava pronta para o sexo. Ma ela ouviu outros arautos como ele. Desprezou a camisinha. Sendo o pai, liberal como era ela nem perguntou; fez.
Como pai, ele viu que teorias são maravilhosas enquanto teorias. Na vida real há que haver controle parental, até que filhos e filhas tenham maturidade suficiente para dizer que amam. Faltou sinal vermelho entre ele e ela! Eu, padre, tinha razão quanto ao semáforo. Sem o proibido, não funciona! Nem que seja toda verde, a sinaleira propõe um tempo!
Ouvi, não julguei e limitamo-nos a falar sobre como ajudar a menina a enfrentar uma gravidez sem aborto. No passado é o que ele teria proposto. Mas agora, não era mais materialista: acreditava em outra vida e em Deus e sua esposa católica, jamais admitiria esta solução. A vida dos outros escapa ao nosso controle. Se não podemos nos matar não podemos, também, matar outro indefeso. Continuamos o contato. A menina deu à luz é hoje adulta, casou-se com outro rapaz, a neta é linda e encheu a família de alegria. O amor livre? O dele já não é mais livre! Tornou-se voluntariamente prisioneiro da mulher que ele realmente ama! Mulher serena faz toda a diferença!